É de uma tranquila cidade do oeste catarinense, recentemente
invadida por sanguinolentos mortos-vivos que espalharam suas vísceras
melequentas por açudes e campos, de onde vem um dos principais nomes do cinema
trash brasileiro atual. Petter Baiestorf nasceu e ainda vive na pequena
Palmitos, que serviu de cenário para a maior parte de suas produções desde
1992, quando criou a Canibal Filmes. Com roteiros inacreditáveis, humor
escatológico, muita criatividade nos cenários e figurinos e pouco ou nenhum
orçamento, o catarinense fincou seu nome no cenário nacional do gênero e ganhou
respeito inclusive dos admiradores da Boca do Lixo, reduto da indústria
cinematográfica barata na década de 1960, em São Paulo.
Petter assina a direção de filmes que já se tornaram
clássicos do trash e do gore, subgênero do horror caracterizado especialmente
pelo excesso de sangue e órgãos expostos, como “O monstro legume do espaço”,
(1995), “Gore Gore Days” (1998) e o épico e mais recente “Zombio 2: Chimarrão
Zombie” (2013) – aquele dos mortos-vivos no oeste –, uma parceria entre
produtoras que ganhou ares de superprodução, se comparado ao quase nulo
orçamento de seus primeiros filmes.
“Quando montei a Canibal eu mantinha um fanzine e era
bastante próximo de bandas independentes, via elas vendendo fitas nos shows e
pensei que poderia fazer o mesmo com filmes. Sempre tive vontade de fazer, mas
não sabia como. Nos primeiros filmes contei com ajuda de colegas do colégio,
eles nunca foram finalizados, mas vimos que era possível fazer aquilo sem
dinheiro, sem patrocínio ou lei de incentivo, coisa que nem existia na época”,
conta. Mesmo com a criação das leis, ele nunca chegou a se inscrever em
editais, sempre bancou seus próprios filmes ou contou com ajuda de admiradores
do seu trabalho e produtores independentes interessados.
Horror na Ilha
De “Zombio 2”, que só foi possível graças à coprodução de
realizadores e que juntava até 70 pessoas no set de filmagem, outro nome de
Santa Catarina já reconhecido no cenário trash nacional também participa da
edição. Gurcius Gewdner começou a filmar por volta de 1996, ainda adolescente,
em Joinville, época em que também fundou a banda Os Legais, elemento
fundamental para suas andanças com a câmera na mão.
“Quando a banda tinha um ano e pouco eu comecei a gravar
depoimentos das pessoas para o documentário de 20 anos dela. As pessoas diziam
‘como assim 20 anos? A banda tem só um ano!’ e eu respondia ‘mas um dia vai ter
20’”, lembra ele aos risos. Desse período até 2002, Gurcius não tinha montado
nada das suas dezenas de filmagens, simplesmente por não saber como fazer. A
partir de 2003, após conhecer
Petter no Curupira, bar underground de Guaramirim onde havia
exibições de filmes e onde Os Legais costumavam tocar, ele aprendeu a editar,
começou a montar o material e decidiu que o cinema seria sua profissão. Entre
suas produções de maior destaque atualmente estão “Nosferatum” (2003), “Mamilos
em Chamas” (2008) e “How to Irritate Hardcore Dandis” (2012).
Desde 2009, período em que esteve morando em Florianópolis,
Gurcius trabalha como assistente do cineasta Ivan Cardoso, idealizador do termo
terrir – filmes de horror tão exagerados que chegam a ser cômicos. Inicialmente
fazia viagens frequentes para o Rio de Janeiro, até mudar-se definitivamente
para lá em 2011, onde segue dirigindo também produções próprias. Seu próximo
filme, “Viatti Arrabbiatti”, que brinca com o horror italiano, foi todo gravado
em Florianópolis entre 2010 e 2014 e deve ser lançado no ano que vem. Além
dele, Gurcius ainda faz parte da produção do trash “Cleópatra 2: A tirania do
desejo”, dirigido por Marcel Mars, também gravado na Ilha.
Marcel nasceu e vive em São Paulo, mas morou em
Florianópolis por dois anos e meio, entre 2009 e 2011, período em que conheceu
parte da equipe que trabalha no filme. “Florianópolis foi o único lugar para
onde viajei especificamente para filmar, e a maior parte das filmagens
aconteceu aí. Certamente é onde a gente tem tido mais facilidade, parte pela
disponibilidade dos amigos daí e parte porque a gente consegue filmar em praia,
dunas, mato, cachoeira, quintais de casas mais isoladas, e nunca veio nenhum
segurança ou policial botando um ‘não pode’ na história”, explica Marcel.
Segundo ele, as filmagens de “Cleópatra 2” também passaram por Mato Grosso do
Sul, La Paz, Barcelona e Bolonha.
Pouca verba, muita disposição
Apesar de na década de 1990 haver menos tecnologia para
produção e de os filmes chegarem a menos gente, nesse período todos os filmes
de Petter Baiestorf se bancavam, realidade que mudou de uns anos para cá.
“Cheguei a vender 1.200 cópias em VHS, coisa que agora é impossível. Hoje tem
tanta facilidade que ninguém mais acompanha nada direito, antes as pessoas iam
atrás do que queriam ver. Os anos 1990 foram uma época em que houve um grande
interesse em filme vagabundo”, diz.
Hoje o público dele é formado basicamente por universitários
cansados do politicamente correto, sedentos por filmes que fujam do senso de
humor certinho. E se na sua mais recente “superpordução” o custo total chegou a
cerca de 30 mil, para Gurcius um orçamento já considerado alto beira os seis
mil, que mesmo aparentemente irrisório, não o impede de fazer nada do que tem
em mente. “Nós estávamos acostumados a fazer filme com nada, e o próprio cinema
americano na década de 1960 já fazia essa coisa experimental. Usávamos cenários
e figurinos tirados do lixo”, diz.
Ainda na década de 1990, em Chapecó, também no oeste
catarinense, um grupo de amigos comandado por Saulo Popov Zambiasi, criou a
Conjuração Trash, que já soma uma produção com mais de 20 vídeos do gênero.
Como o cinema não é a profissão de nenhum dos “conjurados”, a intenção nunca
foi ter retorno financeiro, e a verba para tirar as ideias do papel sempre saiu
do próprio bolso.
“Quando começamos, em 1996, era tudo muito difícil, mas não
menos divertido. A captação de áudio e vídeo era feita por uma filmadora VHS
compacta, com uma fitinha pequena. Hoje temos máquinas digitais, celulares,
softwares gratuitos para edição, computadores melhores, mais espaço em disco.
Entretanto, a gente começa a exigir mais de nós mesmos”, relata Saulo. O grupo
costuma fazer pausas breves nas produções por causa da falta de tempo, mas já
planeja a compra de uma nova câmera para dar um novo gás às próximas filmagens.
Eles se submetem
Pouco orçamento, dificuldade de distribuição e baixo retorno
financeiro são obstáculos que perduram por anos, mas nem de longe afetam o
trabalho dos amantes do cinema underground, que sempre contam com um punhado de
gente disposta a embarcar junto. A questão dos atores é mais um fator
aparentemente complicado de resolver, ao menos no ponto de vista de quem
assiste aos filmes. Mas apesar de parecer improvável que haja profissionais
dispostos a protagonizarem cenas em que são melecados por todo o tipo de gosma,
ficam sem roupa e em situações bizarras, os diretores garantem não haver
transtornos na formação dos elencos. Pelo menos isso.
“Sempre fiz filmes com amigos, que eram ou não atores, mas
nunca foi uma relação profissional do tipo o ‘estou te pagando e você tem que
fazer isso’. Sempre tive a sorte de ter amigos dispostos”, diz. “Sempre achei
sossegada a questão dos atores. Faço filmes com um humor meio doentio, mas é um
trabalho sério. Mando o roteiro antes e o ator diz se quer ou não fazer. Nunca
tive problemas com isso, acho que só uma vez um cara desistiu quando já tinha
começado”, explica Petter.
Gênero tem espaço
Para Gurcius, apesar das recorrentes adversidades, o período
está favorável no país, ao menos no que diz respeito ao terror. “Hoje tem muita
gente produzindo, tem até a Sandy atuando”, lembra, referindo-se ao longa de
horror “Quando Eu Era Vivo”, dirigido por Marco Dutra e que além da cantora
também traz Antônio Fagundes no elenco.
Além dessas superproduções que podem levar possíveis
apreciadores do horror para o os subgêneros de baixo orçamento, hoje também há
muitos festivais de cinema que abraçam o trash e o gore no Brasil e exterior.
“Inscrevemos o ‘Zombio 2’ em aproximadamente 45 festivais e fomos selecionados
para participar de 30, inclusive o Catavídeo, em Florianópolis, no ano
passado”, conta Petter. O filme passou também pelos festivais de Sitges, na
Catalunha, Indie, em Belo Horizonte, Fantaspoa, em Porto Alegre e Riofan, no
Rio de Janeiro.
Publicado no jornal Notícias do Dia