sábado, junho 14, 2014

Com baixo orçamento, melecas cenográficas e muita criatividade, cinema trash conquista seu espaço

É de uma tranquila cidade do oeste catarinense, recentemente invadida por sanguinolentos mortos-vivos que espalharam suas vísceras melequentas por açudes e campos, de onde vem um dos principais nomes do cinema trash brasileiro atual. Petter Baiestorf nasceu e ainda vive na pequena Palmitos, que serviu de cenário para a maior parte de suas produções desde 1992, quando criou a Canibal Filmes. Com roteiros inacreditáveis, humor escatológico, muita criatividade nos cenários e figurinos e pouco ou nenhum orçamento, o catarinense fincou seu nome no cenário nacional do gênero e ganhou respeito inclusive dos admiradores da Boca do Lixo, reduto da indústria cinematográfica barata na década de 1960, em São Paulo.
Petter assina a direção de filmes que já se tornaram clássicos do trash e do gore, subgênero do horror caracterizado especialmente pelo excesso de sangue e órgãos expostos, como “O monstro legume do espaço”, (1995), “Gore Gore Days” (1998) e o épico e mais recente “Zombio 2: Chimarrão Zombie” (2013) – aquele dos mortos-vivos no oeste –, uma parceria entre produtoras que ganhou ares de superprodução, se comparado ao quase nulo orçamento de seus primeiros filmes.
“Quando montei a Canibal eu mantinha um fanzine e era bastante próximo de bandas independentes, via elas vendendo fitas nos shows e pensei que poderia fazer o mesmo com filmes. Sempre tive vontade de fazer, mas não sabia como. Nos primeiros filmes contei com ajuda de colegas do colégio, eles nunca foram finalizados, mas vimos que era possível fazer aquilo sem dinheiro, sem patrocínio ou lei de incentivo, coisa que nem existia na época”, conta. Mesmo com a criação das leis, ele nunca chegou a se inscrever em editais, sempre bancou seus próprios filmes ou contou com ajuda de admiradores do seu trabalho e produtores independentes interessados.

Horror na Ilha
De “Zombio 2”, que só foi possível graças à coprodução de realizadores e que juntava até 70 pessoas no set de filmagem, outro nome de Santa Catarina já reconhecido no cenário trash nacional também participa da edição. Gurcius Gewdner começou a filmar por volta de 1996, ainda adolescente, em Joinville, época em que também fundou a banda Os Legais, elemento fundamental para suas andanças com a câmera na mão.
“Quando a banda tinha um ano e pouco eu comecei a gravar depoimentos das pessoas para o documentário de 20 anos dela. As pessoas diziam ‘como assim 20 anos? A banda tem só um ano!’ e eu respondia ‘mas um dia vai ter 20’”, lembra ele aos risos. Desse período até 2002, Gurcius não tinha montado nada das suas dezenas de filmagens, simplesmente por não saber como fazer. A partir de 2003, após conhecer
Petter no Curupira, bar underground de Guaramirim onde havia exibições de filmes e onde Os Legais costumavam tocar, ele aprendeu a editar, começou a montar o material e decidiu que o cinema seria sua profissão. Entre suas produções de maior destaque atualmente estão “Nosferatum” (2003), “Mamilos em Chamas” (2008) e “How to Irritate Hardcore Dandis” (2012).
Desde 2009, período em que esteve morando em Florianópolis, Gurcius trabalha como assistente do cineasta Ivan Cardoso, idealizador do termo terrir – filmes de horror tão exagerados que chegam a ser cômicos. Inicialmente fazia viagens frequentes para o Rio de Janeiro, até mudar-se definitivamente para lá em 2011, onde segue dirigindo também produções próprias. Seu próximo filme, “Viatti Arrabbiatti”, que brinca com o horror italiano, foi todo gravado em Florianópolis entre 2010 e 2014 e deve ser lançado no ano que vem. Além dele, Gurcius ainda faz parte da produção do trash “Cleópatra 2: A tirania do desejo”, dirigido por Marcel Mars, também gravado na Ilha.
Marcel nasceu e vive em São Paulo, mas morou em Florianópolis por dois anos e meio, entre 2009 e 2011, período em que conheceu parte da equipe que trabalha no filme. “Florianópolis foi o único lugar para onde viajei especificamente para filmar, e a maior parte das filmagens aconteceu aí. Certamente é onde a gente tem tido mais facilidade, parte pela disponibilidade dos amigos daí e parte porque a gente consegue filmar em praia, dunas, mato, cachoeira, quintais de casas mais isoladas, e nunca veio nenhum segurança ou policial botando um ‘não pode’ na história”, explica Marcel. Segundo ele, as filmagens de “Cleópatra 2” também passaram por Mato Grosso do Sul, La Paz, Barcelona e Bolonha.

Pouca verba, muita disposição
Apesar de na década de 1990 haver menos tecnologia para produção e de os filmes chegarem a menos gente, nesse período todos os filmes de Petter Baiestorf se bancavam, realidade que mudou de uns anos para cá. “Cheguei a vender 1.200 cópias em VHS, coisa que agora é impossível. Hoje tem tanta facilidade que ninguém mais acompanha nada direito, antes as pessoas iam atrás do que queriam ver. Os anos 1990 foram uma época em que houve um grande interesse em filme vagabundo”, diz.
Hoje o público dele é formado basicamente por universitários cansados do politicamente correto, sedentos por filmes que fujam do senso de humor certinho. E se na sua mais recente “superpordução” o custo total chegou a cerca de 30 mil, para Gurcius um orçamento já considerado alto beira os seis mil, que mesmo aparentemente irrisório, não o impede de fazer nada do que tem em mente. “Nós estávamos acostumados a fazer filme com nada, e o próprio cinema americano na década de 1960 já fazia essa coisa experimental. Usávamos cenários e figurinos tirados do lixo”, diz.
Ainda na década de 1990, em Chapecó, também no oeste catarinense, um grupo de amigos comandado por Saulo Popov Zambiasi, criou a Conjuração Trash, que já soma uma produção com mais de 20 vídeos do gênero. Como o cinema não é a profissão de nenhum dos “conjurados”, a intenção nunca foi ter retorno financeiro, e a verba para tirar as ideias do papel sempre saiu do próprio bolso.
“Quando começamos, em 1996, era tudo muito difícil, mas não menos divertido. A captação de áudio e vídeo era feita por uma filmadora VHS compacta, com uma fitinha pequena. Hoje temos máquinas digitais, celulares, softwares gratuitos para edição, computadores melhores, mais espaço em disco. Entretanto, a gente começa a exigir mais de nós mesmos”, relata Saulo. O grupo costuma fazer pausas breves nas produções por causa da falta de tempo, mas já planeja a compra de uma nova câmera para dar um novo gás às próximas filmagens.

Eles se submetem
Pouco orçamento, dificuldade de distribuição e baixo retorno financeiro são obstáculos que perduram por anos, mas nem de longe afetam o trabalho dos amantes do cinema underground, que sempre contam com um punhado de gente disposta a embarcar junto. A questão dos atores é mais um fator aparentemente complicado de resolver, ao menos no ponto de vista de quem assiste aos filmes. Mas apesar de parecer improvável que haja profissionais dispostos a protagonizarem cenas em que são melecados por todo o tipo de gosma, ficam sem roupa e em situações bizarras, os diretores garantem não haver transtornos na formação dos elencos. Pelo menos isso.
“Sempre fiz filmes com amigos, que eram ou não atores, mas nunca foi uma relação profissional do tipo o ‘estou te pagando e você tem que fazer isso’. Sempre tive a sorte de ter amigos dispostos”, diz. “Sempre achei sossegada a questão dos atores. Faço filmes com um humor meio doentio, mas é um trabalho sério. Mando o roteiro antes e o ator diz se quer ou não fazer. Nunca tive problemas com isso, acho que só uma vez um cara desistiu quando já tinha começado”, explica Petter.

Gênero tem espaço
Para Gurcius, apesar das recorrentes adversidades, o período está favorável no país, ao menos no que diz respeito ao terror. “Hoje tem muita gente produzindo, tem até a Sandy atuando”, lembra, referindo-se ao longa de horror “Quando Eu Era Vivo”, dirigido por Marco Dutra e que além da cantora também traz Antônio Fagundes no elenco.
Além dessas superproduções que podem levar possíveis apreciadores do horror para o os subgêneros de baixo orçamento, hoje também há muitos festivais de cinema que abraçam o trash e o gore no Brasil e exterior. “Inscrevemos o ‘Zombio 2’ em aproximadamente 45 festivais e fomos selecionados para participar de 30, inclusive o Catavídeo, em Florianópolis, no ano passado”, conta Petter. O filme passou também pelos festivais de Sitges, na Catalunha, Indie, em Belo Horizonte, Fantaspoa, em Porto Alegre e Riofan, no Rio de Janeiro.


Publicado no jornal Notícias do Dia