Já passava das sete e meia da noite quando André terminou de dar o nó em sua gravata skinny, abotoou o paletó de brechó por cima da camisa e calçou as botinhas que se destacavam sob a barra da calça justa. Sua banda, a Torneiras, formada em Itajaí no começo de 2008, tocaria em um bar de temática australiana na vizinha Balneário Camboriú em menos de meia hora. Considerando o trânsito do início da noite fria de um domingo de junho na cidade, certamente chegaria depois do horário marcado. Mas André sabia bem como essas coisas funcionavam. Geralmente os shows começavam cerca de uma hora depois do horário estampado no flyer. Sem muita pressa, juntou suas coisas, entrou no carro e saiu em direção ao bar. Em pouco mais de vinte minutos já estava lá.
Assim que chegou, a atenção dos poucos sujeitos que faziam graça do lado de fora foi voltada para aquela peculiar figura vestida como se chegasse de uma temporada de férias no ano de 1964. André Fuck [sobrenome que pediu emprestado para sua mãe e adotou como seu] cumprimentou alguns conhecidos e entrou no bar segurando o enorme case que protegia a guitarra semi-acústica canhota vermelha. Não eram só as roupas e a pose que faziam com que fosse confundido com um viajante do tempo. As letras de suas músicas não hesitam em fazer referências a gurias retrôs, aos ternos de brechó e aos discos dos Beatles. Os outros dois rapazes que completam a Torneiras não eram tão atípicos, mas estavam acostumados a ver o companheiro de banda caprichar no visual para os shows. Principalmente os que eram importantes como aquele.
Naquela noite eles abririam a apresentação de Júpiter Maçã, aquele que fez um bando de jovens usarem terninho e ajudou a dar impulso à série de bandas que bebem na mesma fonte dos ingleses dos anos 60. Júpiter Maçã, ou melhor, Flávio Basso, foi vocalista de uma das mais icônicas bandas de rock gaúcho da década de 80, Os Cascavelletes. Em 1996, após a mudança de nome e uma guinada psicodélica, fez explodir em cada canto de Porto Alegre um tipo emblemático de adolescente: os mods.
A referência para tudo o que aqueles garotos da capital gaúcha queriam ser vinha da Londres dos anos 50 e 60. Vestidos com ternos italianos impecáveis e justos ao corpo, botinhas lustradas e usando cabelos de cortes simétricos, os mods ingleses uniam-se intrépidos nos pubs londrinos enquanto suas lambretas aguardavam estacionadas do lado de fora. Amantes do jazz, do rythm & blues e do ska, viviam em pé de guerra com os rockers, outro grupo de adolescentes que adotava o rockabilly americano, com suas jaquetinhas de couro e imaculáveis penteados, como estilo de vida.
Bandas como The Who, The Yardbirds, Small Faces e The Kinks adotaram e espalharam o mod pelo resto mundo. Durante a década de 60, novos grupos dispostos a abraçar a subcultura surgiam a todo o momento. No final dos anos 70, quase 15 anos depois da explosão universal do mod, nomes como The Jam e The Vapors, acabaram surgindo e criando o que foi chamado de “mod revival”. A reinvenção do movimento tinha basicamente a mesma proposta do original, porém, novas influências passaram a ser injetadas na música.
Na primeira metade dos anos 80, nascia no Sul do Brasil uma das primeiras bandas do país a carregar sutilmente a referência mod em suas melodias, o TNT. Depois de algumas músicas lançadas, dois dos seus membros decidiram deixar o grupo para formar outra banda. A ideia era manter referências semelhantes, mas com uma proposta um pouco diferente: eles preferiram trocar as histórias sobre garotas e aventuras com carros a mil por hora por frases mais obscenas e escrachadas. Eram Os Cascavelletes – a banda do vocalista que anos mais tarde só atenderia por Júpiter Maçã.
Sim, nós somos mods
O ano era 2000, os quatro jovens tinham todos em torno de 18 anos e havia um bom tempo já desfilavam seus terninhos e calças de linho pelas ruas de Porto Alegre. Foi quando decidiram formar uma banda. Uma banda essencialmente e assumidamente mod. “Pra tomar trago e pegar mulher”. Paulo Germano, Rodolfo Krieger, Beto Stone e Thiago Peduzzi empunharam respectivamente a guitarra, o microfone, a bateria e o baixo. Tornaram-se então os Gabardines.
– A gente era muito mod. Tu acha que [a banda] Cachorro Grande é mod? A gente era muito mais mod. – repetia Paulo Germano em uma manhã de domingo em Porto Alegre, ainda emendando a noite de sábado, quase nove anos depois dos tempos áureos dos Gabardines.
Hoje, aos 28 anos, Paulo é jornalista de um dos principais jornais do Rio Grande do Sul. Após se dedicar durante algum tempo a escrever uma coluna semanal sobre rock alternativo no caderno de cultura, hoje cobre política. Mas jamais pensou em deixar a música de lado.
Se para André Fuck, da banda Torneiras, é normal de vez em quando trocar o terno por uma jaqueta de couro e as botinhas por um par de All Star imundo, Paulo lembra que na época dos Gabardines não era bem assim. Eles costumavam ser inimigos de quem adotava esse estereótipo.
– A gente era fútil, andava sempre arrumadinho, barba feita, sapato lustrado, então rolava uma rivalidade com os punks chinelões.
Junto com os Gabardines foram despontando novas bandas semelhantes na cidade, como o Cachorro Grande, que mais tarde conquistou espaço em nível nacional, e o Laranja Freak, que ainda misturava boas doses de psicodelia em suas canções. Fora da capital, em Rio Grande, vinham ao mundo também os Faichecleres, que com suas letras divertidas e desbocadas não tardaram em se mudar para Curitiba. Lá, passaram a garantir reconhecimento e respeito no underground com seus ternos, suas camisas espalhafatosas e curiosos cortes de cabelo. Os Faichecleres acabaram dando visibilidade para outras bandas na capital paranaense, como os Dissonantes, que despontavam com o seu rock’n’roll sessentista açucarado.
Após quase dois anos perambulando pelo andar de baixo do rock porto-alegrense, com algumas músicas de destaque no cenário roqueiro, como “Thati pira” e “Sentimento de carência”, metade dos Gabardines, Paulo e Thiago, começaram a cansar daquela história de terninho.
– Começou a ficar muito manjado, sabe? Virou uma moda. Não era mais um diferencial tu sair na rua de terno e gravata. – argumenta Paulo.
A partir daí, o fim da banda já parecia iminente. Mas a situação conseguiu piorar.
– A gente queria ser igual ao The Who, mas o Rodolfo resolveu que queria tocar guitarra e não só cantar. Disse que se sentia pelado. Só que não tinha lugar pra outra guitarra, entende?
As diferenças estéticas e musicais acabaram em brigas com direito a soco na cara. O clima ruim decretou o fim dos Gabardines.
Paulo e Thiago trocaram os terninhos por jaquetas e os sapatos por pares de All Star, chamaram dois amigos e, no final de 2002, formaram o Stratopumas, com uma proposta completamente nova. Já Beto e Rodolfo compraram mais alguns ternos, deixaram seus sapatos ainda mais lustrosos e, também com mais dois amigos, formaram Os Efervescentes.
Apesar das diferenças e dos rumos que cada um tomou, todos eles continuaram amigos, chegando a criar situações divertidas e até uma falsa rivalidade. Um show das duas bandas, em 2004, intitulado “Jaquetinhas versus Gravatinhas”, trazia no flyer de divulgação a foto dos dois vocalistas frente a frente com expressões furiosas. Naquela noite, dizem os boatos, uma gravata chegou a ser queimada. Hoje os Stratopumas não existem mais. Já os Efervescentes continuam por aí com o mesmo propósito de anos atrás e uma nova formação. Rodolfo Krieger passou a fazer parte da banda Cachorro Grande em 2005.
Para Paulo, apesar das bandas remanescentes, o movimento morreu. E alguns detritos do passado hoje ecoam um tanto embaraçosos.
– Por exemplo, sempre no final dos shows a gente tinha que quebrar os instrumentos. Hoje, se eu tocar em um show e decidir espontaneamente quebrar a minha guitarra, tudo bem. Mas, com a gente, isso já era previamente pensado.
Mesmo achando que adotar o mod atualmente é mais uma tendência, Paulo não critica quem ainda aposta nessa, e defende as bandas que investem na aparência.
– Quem diz que o visual não importa e o que importa é só a música, não sabe o que tá dizendo. Uma das coisas mais cativantes no rock é o visual. Não existe rock sem indumentária.
Os sobreviventes de uma época
Foi numa tarde quente do mês de novembro de 2010, que Os Efervescentes chegaram a Balneário Camboriú. À noite seria o primeiro show de uma turnê de quatro dias por quatro cidades diferentes de Santa Catarina. A formação atual da banda agora contava com apenas dois membros originais e definitivos: Beto Stone e Daniel Tessler. O primeiro continuava empunhando as baquetas. O segundo assumiu a guitarra e o vocal. Para dar apoio nos shows, a dupla ainda convidava mais um guitarrista, o Gustavo Chaise, e um baixista, o Eduardo Barretto.
– Eu ajudei a fundar a banda em 2002 com o Beto, o Daniel e o Rodolfo – disse Eduardo, entre goles de cerveja em um boteco com cheiro de fritura no centro de Blumenau, na noite do terceiro show da turnê.
– Desde então já saí e voltei da banda algumas vezes. Da última vez que saí foi porque eu tava com outras ideias na cabeça. Mas eles são meus amigos e precisaram de mim agora, então...
Atualmente Eduardo toca em outras quatro bandas, entre elas a Faichecleres, que agora vive em São Paulo, o que obriga o músico a fazer ponte aérea para os shows na capital paulista. Ele também acompanha uma cantora de MPB em Porto Alegre e recentemente passou a fazer parte de uma banda com influências mais modernas, os Gulivers. Nos shows, Eduardo acaba se destacando dos demais integrantes por sempre vestir o inseparável terno e as botinhas pretas.
– Até falaram pra eu usar umas jaquetinhas da Nike... – brinca o baixista.
Mas é na sua banda original, os Impressionistas, que Eduardo pode mostrar seu talento como compositor. Na mesma banda toca também Gustavo Chaise, o guitarrista que acompanhava os Efervescentes nos shows em Santa Catarina. O som dos Impressionistas, como não poderia deixar de ser, perambula com certa autenticidade pelos anos 60.
A preocupação dos Efervescentes em fazer um show perfeito é visível em cada detalhe. Em cada apresentação, Beto e Daniel usam um figurino diferente, e as roupas dos dois são obrigatoriamente iguais. Eduardo e Gustavo, como apenas acompanham a dupla, adotam o mesmo modelo em todos os shows: sapatos pretos, terno preto, camisa branca e grava skinny também preta. Durante as viagens de van, Beto e Daniel se preocupam também em se acomodar nos bancos dianteiros, ao lado do motorista, onde a bagunça tende a ser menor.
– A gente prefere ficar lá pra se concentrar. Ali atrás tinha sempre muita bagunça. Esses dois aqui [aponta para Gustavo e Eduardo] são foda e não precisam disso. Mas já sabem que se errarem no show ganham só metade do cachê. – disse um cansado Beto Stone em tom de brincadeira enquanto esperavam o ônibus que os levaria de volta para Porto Alegre, na segunda-feira de manhã, horas após o último show.
O baterista, que era membro original também dos Gabardines, não costuma comentar muito sobre a época. Quando questionado sobre alguns detalhes, minutos antes do segundo show da turnê, em Rio do Sul, dizia não se lembrar muito bem dos detalhes da fase Gabardines.
– Mas eu vou lembrando, aí eu te falo.
Não queremos ser iguais a ninguém
Foi em uma loja de discos em Joinville no verão de 2006 que Miles Babireski e Juninho se conheceram.
– Se a gente fosse inventar essa história, não teria saído tão legal – disse o sorridente Miles driblando o som alto de um pub apinhado de gente certa noite em Joinville.
Na época, Miles ainda morava em Canoinhas e tinha ido para Joinville visitar alguns parentes. Naquele dia a família toda resolveu sair para dar uma volta no shopping e, um tanto entediado, Miles entrou em uma loja de discos, só para matar tempo. Circulando pelas prateleiras, dando olhadelas na sequência de guitarras penduradas na parede, ouviu uma voz masculina perguntando ao atendente da loja se por acaso não tinha o CD do The Kinks.
– The Killers? – teria rebatido o ingênuo vendedor.
Após o lapso, Miles resolveu intervir na conversa entre o balconista e aquele rapaz de costeletas e camisa listrada.
– Não lembro bem o que eu falei, mas acho que fiz um meio de campo pro vendedor entender que era The Kinks, e não The Killers.
Miles não fazia ideia de que dois anos depois aquele rapaz chamado Luiz Carlos Molodowski Junior se tornaria simplesmente o Juninho, vocalista e baixista da banda que ele ainda nem tinha. Depois de chegarem à conclusão que de fato não havia o CD do The Kinks na loja, Miles resolveu puxar assunto com o simpático jovem.
– Conversamos pra confirmar o nosso gosto sixtie, Beatles, as outras duzentas bandas boas dos anos 60, essas coisas. Eu já vi que o Juninho tinha mais essa veia The Kinks e The Who, e eu tinha aquele lance Beatles 63, aquele iêiêiê mais melódico. Daí eu acho que fechou certo, se completou. Então trocamos nossos contatos pra um procurar o outro no Orkut, porque na época o Orkut era relevante.
No fim das contas ninguém adicionou ninguém no Orkut, mas não demoraria muito para que o destino se encarregasse de colocar os dois na mesma estrada novamente. Assim que Miles se mudasse definitivamente para Joinville, em 2007.
– Eu e o Juninho tínhamos um amigo em comum, o Eduardo Baumann. Ele entende bastante de mod e sabia que eu queria montar uma banda anos 60, e o Juninho tava procurando uma faz tempo também. Daí nos encontramos os três em um show do Renato e seus Blue Caps e tudo se esclareceu. Ele era o cara da loja de discos.
Após alguns meses de reuniões musicais, um dia na casa de um, outro dia na casa de outro, em novembro de 2008 os Bacamartes fizeram seu primeiro ensaio. O nome da banda, disse Miles certa vez em entrevista para uma emissora de televisão, tinha que começar com B, por causa dos Beatles, dos Beach Boys e dos Byrds. Era óbvio que uma banda que foi unida por causa do The Kinks teria como inspiração alguns dos principais nomes do rock’n’roll sessentista.
– Mas nós não nos consideramos mods – apressou-se em esclarecer o discreto Juninho com seus olhos atentos quase cobertos pela franjinha à la Keith Moon nos idos da década de 60. – Porém, reconhecemos a influência dele em nossas músicas. – acrescentou em seguida.
Se no ano 2000, lá em Porto Alegre, os Gabardines queriam ser iguais ao The Who, Juninho diz que com os Bacamartes a situação é outra.
– Nós temos várias influências, mas não queremos ser iguais a ninguém. Pegamos um pouco de referência de várias bandas e tentamos ser nós mesmos.
Apesar do som nitidamente sessentista, a banda não se preocupa tanto assim com o visual, e procura adotar sutis referências do vestuário dos mods misturadas a peças básicas do dia a dia. Mas ainda assim convivem com olhos curiosos de quem não faz parte de nenhuma vertente do rock e um discreto preconceito de quem prefere um som mais pesado e um visual mais agressivo.
E por que no sul?
É inegável que os três estados do Sul são os que mais abrigam bandas influenciadas pelo rock sessentista e, principalmente, pelo mod. Para Miles, dos Bacamartes, o clima da região tem uma parte da responsabilidade pelo fenômeno.
– Quando é calor o tempo inteiro, o pessoal vai pra praia. Quando é frio, tu coloca um casaco e pensa: vou fazer música. – teoriza.
Já André, da Torneiras, acha que tem muito a ver com a colonização dos estados do Sul.
– As melhores bandas e as mais importantes dos anos 60 eram inglesas. Talvez seja algum traço da característica dos europeus, sei lá. – arrisca dizer.
Mesmo que o mod nunca tenha sido tão reconhecido e revolucionário no Brasil quanto o punk ou até mesmo o gótico, a bagunça que começou a ganhar ares de movimento revolucionário nos anos 90 em Porto Alegre foi a princípio o que mais se assemelhou ao verdadeiro espírito da subcultura.
Para Paulo Germano, que hoje faz parte da história daquele efêmero movimento, tudo aquilo era uma forma de se encontrar, de fazer parte de um grupo.
– Não teve a época dos punks, dos emos e agora esses que usam roupas coloridas? Então, na nossa época era daquele jeito. Aquilo nada mais era do que um grupo de adolescentes querendo ser parte de alguma coisa.
Reportagem escrita para a disciplina de Redação Jornalística - Jornalismo Literário
Por Juliete Lunkes